A cura
A água descendo num fio
pequeno pela torneira sobre a cebola com casca. Lágrimas escorriam nas faces
acompanhando o fio de água. Depois foi a vez do cacho de bananas. Passava uma
pequena escova em cada banana e, em seguida, enxaguava todo o cacho de uma vez.
As cabeças de alho não escaparam. Já estavam secando ao sol, no parapeito da
janela que dava para a parede de outro prédio. Estendidas no varal estavam as
notas que havia recebido de troco pelas compras e, ao lado delas, alguns sacos plásticos
pingavam e ensopavam o chão. Atchim!
Atchim! Atchim! Sempre três seguidos. O coração deu um só pulo, assustado e sem
ritmo. “Será? Não, não é nada não.” E batia três vezes na madeira para espantar
a má sorte e isolar o pensamento ruim.
Despejou num pano o restante
de álcool que havia no vidro e passou pela segunda vez no chão. Como faria para
desinfetar as superfícies, mesa, teto, se a última gota de álcool havia sido
passada no chão e não havia encontrado o produto no mercado? Ainda havia água
sanitária de sobra em casa e também no mercado. Misturou uma parte dela com
cinco partes de água e passou em todas as superfícies que havia na casa, mesmo que
já tivesse passado álcool em tudo na manhã daquele dia.
Tudo o que fazia era
automático como o piscar de olhos e o respirar. Foi assim, automaticamente, que
recolheu todas as caixas de leite que havia lavado e já estavam secas; guardou-as;
em seguida retirou as laranjas do molho, enxugou-as com um pano limpo e colocou-as
na fruteira.
Atchim mais três vezes
enquanto desinfetava as maçanetas. “Será?” Batidas na madeira, três. Sentiu uma
vertigem acompanhada com o que parecia falta de ar. Nunca havia sentido falta
de ar e não sabia bem se era assim. Deixou o pano cair no chão e encostou-se na
parede, deslizando as costas até sentar-se no solo. Lembrou-se de uma técnica
de respiração que havia aprendido e fez. Respirou fundo, segurou um pouco
contando até 5, soltou. Repetiu. Mais uma vez. Passou o mal-estar. Levantou-se
e terminou de limpar as maçanetas. Seguiu para a desinfecção dos interruptores
de luz. Enquanto passava o pano cuidadosamente em cada interruptor, acendendo e
apagando a luz, pensou que precisava ligar para o marido que estava na China
pesquisando um remédio que pudesse curar o mal do mundo.
Foi para o banho. Queria
livrar-se de todo o suor do dia. Chorou embaixo do chuveiro. Lágrimas desciam
pelo ralo junto com a água do banho. Colocou uma roupa bem bonita, a que mais
gostava, não porque fosse sair, mas sim porque ia falar com o marido. Passou blush,
delineador nos olhos e batom vermelho nos lábios finos.
Quase 18 horas. Hora de rezar.
Pegou a imagem da santinha de devoção e foi até a janela. De olhos fechados,
segurando firme a imagem com as duas mãos, rezou e pediu com muita fé, implorou
aos céus a cura de tudo, do mundo, de todos. Mais lágrimas desabaram. Alguém ouvia
uma música melancólica. Chorou mais.
Ficou sem vontade de falar com
o marido naquele dia. Não queria falar com ninguém. Não queria pensar. Só
queria dormir. Acordou às 4 da manhã e ficou olhando para o teto, perdendo mais
uma vez o sono na mesma hora da madrugada. Rezou para todos os que estavam
partindo naquele exato momento.
Começou a pensar em como
sempre foi um tanto quanto catastrófica e apocalíptica. Ao longo da vida, foram
várias as vezes que passaram-lhe pela cabeça cenários de hecatombe, cenas
trágicas de Terceira Grande Guerra, de um meteoro devastador caindo sobre a
Terra, ou de um terremoto medonho, um tsunami destruindo tudo e todos. Quando centenas
de pessoas morreram sob a lama provocada pelo rompimento de uma barragem,
chegou a sonhar noites seguidas com situação parecida acontecendo ali,
acordando assustada e checando se não havia lama no corpo dela e no do marido,
mesmo não existindo barragens onde moravam. O que nunca havia imaginado, e
talvez ninguém, a não ser alguns roteiristas de filmes de epidemias, contágios,
etc., era que o que avassalaria o mundo seria um vírus invisível, viajante e
mortal. Um vírus que praticamente se teletransportava, aparecendo em todas as
partes da Terra.
Vivia agora em um mundo pandêmico
e em um tempo de mãos machucadas de tanto lavarem-se e de tanto lavarem. Pessoas
e até animais de estimação eram obrigados a usar máscara. Tempo de afastamento
das pessoas, de isolamento, de solidão. Abraços, beijos e cafunés eram
proibidos. Também era proibido ir ao cinema, caminhar, viajar e velar os
mortos. Morrer era difícil, não havia despedidas e os vivos precisavam se
livrar dos mortos o mais rapidamente possível. E eram muitas as mortes. Nascer
era tão difícil quanto morrer. Assim, a população mundial diminuía com o
aumento do número de mortes e a diminuição de quem vinha à luz.
No entanto, era um tempo de
solidariedade. Até os corações mais egoístas tornaram-se solidários, enxergando
os invisíveis e os miseráveis, notando os outros umbigos e não apenas o próprio.
A humanidade, diante da molécula mortal, parecia ter salvação, e até a
natureza, tão constantemente maltratada, voltou novamente a ter alegria. O céu
azulou, ficou alaranjado e com tons de rosa, mais pássaros cantavam como nunca,
inúmeras tartarugas passaram a nadar em águas límpidas e cristalinas. Árvores e
flores exibiam exuberância e frescor.
Levantou-se cansada de tanto
pensar e de tão pouco dormir, fez café e tomou um gole. Precisava ir à farmácia
para comprar própolis. Envolveu toda a cabeça e o pescoço com um lenço, calçou
botas de plástico, pôs óculos escuros, máscara e lá foi ela. Fazia tempo que a
vaidade não a acompanhava. Não se importava de parecer ridícula e absurda, até
porque ninguém a reconheceria.
Colocar os pés na calçada era,
agora, como estar entrando em uma zona de guerra. Temia que projéteis virais
invisíveis a atingissem e, por isso, andava com pressa, sem respirar direito
por causa da máscara, e atravessando a rua rapidamente assim que via chegando
em sua direção alguém sem máscara. Discriminava a olhos vistos os
desmascarados. Se as pessoas vinham mascaradas, não atravessava a rua, mas ia para
uma parte da calçada que fosse o mais longe possível delas.
Entrou em casa, deixando os
sapatos do lado de fora, e a operação de guerra continuou. Despiu-se colocando a
roupa infectada sobre um lençol estendido no chão, espirrou água sanitária nos
pés e lambuzou as mãos com álcool gel, esfregando bem. Em seguida, correu nua e
na ponta dos pés para o banheiro, entrando rapidamente debaixo do chuveiro e imaginando
as moléculas monstruosas indo por água abaixo, num banho demorado e bem quente,
apesar do calor que fazia. As roupas e o lençol já estavam sendo lavados na
máquina. Após o banho, ficou um bom tempo deitada esperando a máquina acabar de
bater a roupa. Estendeu-a e, em seguida, comeu um pouco da comida feita no dia
anterior. Agora estava ansiosa para ligar para o marido. A desconhecida
sensação que parecia falta de ar tomou-a novamente. Sentiu-se febril e dormiu.
Acordou ao entardecer com o som da chamada de vídeo do marido. Atendeu e
ouviu-o, eufórico, dizendo de forma atropelada:
– Amor, amor, estamos chegando
bem perto de um remédio que vai curar a doença provocada por esse vírus.
Ouviu com alegria o
que o marido disse. Uma sensação de bem-estar invadiu-lhe o ser cansado e
humano. Partiu deixando nos lábios um leve sorriso.