segunda-feira, julho 08, 2019

Formigas

Nanci Ricci

Fui reclamar de formigas para a Iraci. Ela perguntou se eram das miudinhas ou maiores. Das maiores. Então veio a solução:
– Você pegue um pote vazio e limpo de maionese e passe mel em todo o interior dele. Deixe-o no caminho das formigas. Quando você perceber, todinhas estarão lá dentro e seu problema vai ter fim.
Não sou nenhuma inocente com relação a formigas. Sei que elas não se agrupam em apenas um local, mas se espalham como fungos. É como se dessem cria umas às outras, infinitamente. Uma vez, quando eu era moça e levava marmita, deixei-a em cima da pia e, no dia seguinte, quando fui pegá-la para ir trabalhar, gritei de susto ao ver a marmita, a pia e quase toda a cozinha tomadas por essas criaturas. Fiquei sem almoçar e nunca mais levei marmita. Não sei o que deu em mim de acreditar na Iraci e de fazer o que ela disse. Deixei o pote deitado no chão e lambuzado de mel e saí. Esperava que, quando eu chegasse, era só fechar o vidro entupido com todas as formigas do mundo e meu problema teria fim.
Quando abri a porta no final do dia quase tive um treco. A casa era uma pretura só de formiga para todos os lados, paredes, teto, chão. Tudo tomado por essas pragas. Fechei a porta, saí horrorizada e fui para um hotel. Contratei uma empresa de desformigação e, duas semanas depois, uma equipe de limpeza. Precisei comprar roupas enquanto fiquei no hotel. Foi um gasto enorme.
Não falei com a Iraci durante esse tempo. Ela mandava “bom-dia” com corações no Whatsapp e eu não respondia. Resolvi responder um mês e meio depois e não toquei no assunto. Nunca esqueci o que ela me fez e um dia daria o troco. Não seria uma vingança, pois isso é coisa de gente má.
Passaram-se dois anos e o dia de dar o troco chegou. Iraci entrou em casa mostrando umas bolinhas vermelhas no braço que davam uma coceira danada. Na hora me veio na cabeça de ensiná-la um remédio com uma erva que eu conhecia e que “tiraria com a mão” as bolinhas e a coceira. Fiquei de arranjar a erva pra ela e de fazer o preparo. Era uma erva poderosa que fazia piorar o que já estava péssimo. Amassei, coloquei um óleo especial e levei num vidrinho dizendo que era pra passar antes de dormir. Iraci foi parar no hospital, com o corpo todo embolotado e com uma coceira dos infernos. Ela teve de ser colocada em coma induzido.
Entrei no quarto e vi o Antonio ao lado da cama, muito triste e lacrimoso. Falei que ele podia ir descansar que eu passaria a noite com minha amiga.
Revezamos as noites ao lado dela durante quase dois meses. Numa manhã, Iraci abriu os olhos e me viu ao lado da cama. Fez um sinal com a ponta dos dedos para que eu chegasse bem perto. Abaixei e ela balbuciou:
– Cuide do Antonio.
Assenti com a cabeça. Ela pediu que eu jurasse. Jurei.
Enterramos Iraci no dia seguinte e uma semana depois eu e Antonio estávamos saindo. Beijos entre lágrimas, as dele. Só chorei um pouco durante o velório. Tinha de chorar, Iraci era minha melhor amiga.
O certo é que tenho minha consciência bem levinha. Afinal, fiz o que ela me pediu e estou cuidando do Antonio. Já estamos juntos faz quatro anos e meio.
Hoje me deu vontade de levar flores para Iraci. Na plaquinha com o nome dela havia um caminho de formigas iguaizinhas àquelas que apareceram em casa. Uma delas me picou e agora estou com uma coceira danada e parece que está se alastrando. No mesmo lugar onde deu aquelas bolotas vermelhas no braço da Iraci. Que estranho!

quinta-feira, junho 13, 2019

Os tapetes

Nanci Ricci – São Paulo/SP

Quem me acordou, como sempre, foi Zeus, meu gato. E por mais alegria que ele me dê ao nascer do sol, naquele dia saí da cama pesarosa, pressentindo que o dia seria esquisito. Nem escolhi a roupa direito para ir trabalhar. E olhe que sempre gosto de combinar tudo, roupa, sapatos, jamais saio sem brincos nem batom. Até consegui passar um batom meio sem cor, mas brincos, pela primeira vez, fiquei sem e fui com as orelhas nuazinhas. Depois de subir de ônibus lotado, descer de ônibus lotado, pegar trem, lotação, cheguei, enfim ao meu trabalho. E ter um trabalho, em certas épocas, ou melhor, em todas as épocas, é um luxo. Cumprimentei a todos os que encontrava pelo caminho com um leve abaixar de cabeça. De minha boca não tinha jeito de sair nem um “bom-diazinho” sequer.
No banheiro, lavei o rosto e não acreditei na minha cara lambida. Procurei na bolsa um batom mais vivo, um rosa ou vermelho-claro, e não achei. Não me conformava com minhas orelhas peladas e fucei na bolsa para ver se não tinha um par perdido em um dos dez compartimentos dela. O jeito foi começar a trabalhar com cara lambida e orelhas peladas. Liguei o computador e esperei o lerdo iniciar. Trabalhei um pouco, vi quando o café chegou nas garrafas térmicas e corri para pegar um. Algo precisava tirar de mim aquela sensação esquisita e tinha esperança de que o café o fizesse.
Voltei para o meu lugar e vi que meu chefe já havia chegado. Para ele eu disse um bom-dia falado e, antes que eu me sentasse, ele me chamou. Quis saber algumas coisas do trabalho que eu estava fazendo e me disse que às 10 horas era para eu subir para a sala de reunião do 5º andar. Voltei para minha mesa mais pesada do que quando acordei. Sala de reunião? Para quê?
O tempo de espera até o horário para eu subir pareceu infinito. E minha ansiedade galopante não deixava que eu fizesse mais nada de útil. Passei a visualizar mil tragédias e cenários futuros terríveis e doloridos.
Eu tinha 44 anos, dependia daquele salário para tudo: o aluguel do apartamento mínimo no centro da cidade, minha alimentação e do meu gato, contas de água, luz, gás, telefone, Netflix, etc. A família havia se diluído no caminho. Uns mortos, outros eu não via fazia décadas, e eu havia sobrado e ainda estava por aqui.
Dez horas. Subi. De escada, para a cada degrau subido eu poder pensar sobre mais situações avassaladoras e terríveis. Entrei na sala branca e gelada e sentei na cadeira cinza de metal frio. Comecei a chacoalhar uma das pernas, com a ansiedade concentrada nelas. Fiquei uns dez minutos esperando até que chegou a moça do RH, baixinha, com um salto enorme, roupa parecendo que foi passada no corpo e cabelos lisíssimos e brilhantes. Disse-me um bom-dia com um sorriso amarelo, ainda que os dentes dela reluzissem de tão brancos, e sentou do outro lado da mesa, colocando uma pasta em cima. Toda a introdução, as justificativas, os esclarecimentos sobre os problemas pelos quais a empresa estava passando, todo o blá-blá se resumiu em uma frase curta e devastadora: “Você está despedida!”.
Juro que me deu vontade de pedir “PeloamordeDeus” que não me despedissem, pois onde eu ia encontrar trabalho com dezenas de milhões de desempregados e tal? Que bom que um orgulho que sempre temos me impediu de fazer isso e também me impediu de chorar ali, na frente da moça.
Desci as escadas, peguei minha bolsa e saí, sem olhar para ninguém, sem dizer nada. Alguém me chamou mas a rapidez com que saí não deixou a pessoa me alcançar. Lá fora chorei. Fui chorando no ônibus, no metrô e desci uns 3 km longe de casa para poder passar no mercado. Não chorava mais.
Comprei comida para mim e para Zeus e produtos de limpeza em excesso. As sacolas ficaram absurdamente pesadas. Dividi entre os dois braços e me arrependi de ter comprado tanto. Sempre tive muito medo de passar fome, e essa é a justificativa para a compra enorme de comida. Ainda tinha dinheiro e ia receber o valor da rescisão, por isso acho que quis fazer estoque. Nunca passei fome na vida, mas quase. Éramos bem pobres e vivíamos com grande dificuldade, mas nunca faltou comida. Ela chegava com muito sacrifício, mas chegava. Às vezes era arroz com ovo, arroz com banana, arroz apenas, feijão com farinha, mas comíamos todos os dias. O quase talvez tenha me traumatizado, e por isso eu tinha esse medo da fome.
Cheguei em casa quase morta de carregar aquele peso. Podia ter pego um táxi, mas a economia que precisava fazer daquele momento em diante havia me invadido e por isso fui a pé, me autoflagelando com a caminhada carregando um fardo maior do que eu podia carregar.
Naquela noite não dormi nada, claro. Se não dormia direito nem quando tudo estava dentro da normalidade, imagine quando algo saiu do eixo. Não era mais para ir trabalhar, fui dispensada do aviso-prévio. Eu tinha de esperar que me ligassem para a homologação e exame médico.
Passei o dia de camisola e limpando a casa. Limpei cantos que nem sabia da existência, cada milímetro foi esfregado com força, mesmo com o braço doendo da dor de sempre e do acréscimo de dor pelas sacolas pesadas. Limpei dentro de armários, tirei roupas que não usava mais, sapatos, bolsas, fiz umas dez sacolas para doação. Ou seria melhor vender? Como tudo aquilo cabia naquele lugar minúsculo onde eu morava?
Na hora de fazer comida, fiz só um pingo. Era a economia de novo. Nunca fui de desperdício e jamais jogava comida fora, mas agora precisava fazer menos ainda. Ia aprender a comer menos. O pior é que sempre fui de ter fome o tempo todo, além da ansiedade que me fazia comer mais. O medo da fome ia fazer eu não ter tanta fome.
Depois de um dia de faxina exaustiva, deitei e fiquei olhando para o teto. Enxerguei umas manchas escuras de bolor e lá fui eu pegar a escada e, vencendo o cansaço, esfreguei e tirei todas as manchas que encontrei pelo caminho. Por fim, tomei banho e desmaiei.
O Zeus em cima de mim me acordando e o despertador tocando me fizeram abrir os olhos e, lembrando-me da realidade em que me encontrava, senti um aperto no peito como se fosse morrer. Não tinha para onde ir, quero dizer, não tinha o trabalho para ir. O que eu ia fazer? E como ia ganhar dinheiro?
A casa estava limpa, já havia feito a cata nos armários, não queria ler nem ver TV. Também não queria sair. Vai que me desse uma vontade súbita de comprar algo de que não precisava. Nada de gastar. Foi quando resolvi matutar e pensar nas coisas que eu sabia fazer. Aprendi confeccionar uns tapetes peludos com uma tia, havia muitos anos. Eram tapetes bacanas, costurados na máquina. Deixei essa ideia ir amadurecendo e certa esperança alegre me invadiu e eu sorri, o que não fazia há tempos.
Comprei uma máquina de costura com o dinheiro da rescisão e comecei a costurar tapete e mais tapete. Mal parava para comer e ir ao banheiro. Sou compulsiva com certas coisas que começo a fazer e faço sem parar até enjoar. Por exemplo, uma vez comecei a fazer sapatos de lã e não parava nunca mais. Doei setenta pares para uma casa de repouso.
Como venderia os tapetes? Sempre fui péssima vendedora. E vender em feira de artesanato não daria certo. Sempre que ia a uma dessas feiras, ficava com pena dos artesãos-vendedores, sempre com olhos de esperança que seus produtos fossem comprados e, com as pessoas apenas passando e não comprando nada, viravam olhos tristes. Era capaz de eu ficar com olhos tristes o tempo todo e espantar possíveis fregueses.
Costurei dezenas de tapetes e parei só quando não havia mais espaço para colocar um sequer. Com essa pausa, pensei que poderia vender pela internet, fazendo uma boa estratégia de marketing.
Daquele dia em que acordei terrivelmente pesarosa até hoje se passaram dez anos. A frase que ouvi na época “Você está despedida!” e que, no momento, pareceu-me a mais terrível e portadora de um futuro terrível e sombrio, foi a melhor fala que alguém podia dirigir a mim em todos os tempos. Hoje sou empresária de tapetes peludos e eles são vendidos em vários países da América Latina. Não costuro mais e tenho vários funcionários para cuidar da confecção e de outras áreas da empresa. A empresa vai muito bem e nunca mais ouvirei “Você está despedida!”. Aliás, essa frase nunca foi dita por mim a nenhum funcionário. Nunca foi necessário e até hoje só saiu quem quis.


Conto publicado na 15a. edição da @Revista LiteraLivre.

quarta-feira, junho 12, 2019

O par perfeito

Passou uma vida inteira no canto esperando a volta de seu par. Não aceitava um par que não fosse o seu perfeito. Morreu amarelada pelo tempo e pela espera, mesmo com tantos pés de meia querendo fazer-lhe par.

quinta-feira, maio 09, 2019



Desceram do trem descalços e cada um trazendo um embrulhinho na mão e um vazio de estômago e de alma. De tristeza e miséria morreram quase todos. Catarina, a mais nova, não. Até hoje ela gosta de rosa, da cor e da flor, e vive do turismo que fazem em seu corpo.


terça-feira, abril 16, 2019

segunda-feira, abril 01, 2019

IV CONCURSO DE MICROCONTOS DE ARAÇATUBA – SP, 2019
#microcontofatimaflorentino


Violência contra a mulher


O primeiro empurrão foi apenas um escorregão. O primeiro tapa foi apenas um esbarrão sem querer. O primeiro soco no olho foi um encontrão que deu na maçaneta. A última piscada que deu, de forma brutal, sangrenta e violenta, foi a última piscada que deu, de forma brutal, sangrenta e violenta.


Denuncie! Contra a violação dos direitos das mulheres - Ligue 180

Palavra do dia: coragem

Com toda a coragem do mundo, atirou-se no precipício. Foi uma sensação maravilhosa planar sob o céu lindo e azul. Sua mãe olhava com muito orgulho o primeiro voo de seu filhotinho.


#microcontofatimaflorentino

Palavra do dia: procrastinação
No concurso de soletração:


- Procrastinação! P-R-... Zzzzzzzzzzzzzz


#microcontofatimaflorentino

Palavra do dia: cachorro
Ping-pong


- Uma pessoa.

- Meu cachorro.

- Uma inspiração.

- Meu cachorro.

- Você quer dizer mais alguma coisa?

 - Meu cachorro, meu cachorro, meu cachorro!


# microcontofatimaflorentino

quarta-feira, março 06, 2019

Palavra do dia 22/2/2019: blusa

- Não colocaram em mim a blusa que pedi - pensou com seus botões, antes de colocarem a tampa.


Palavra do dia 6/3/2019: cinzas

Do pouco que tinha restaram só cinzas. Mas agora ela também tem uma esperança verdinha que acabou de pousar em suas mãos postas em oração.


terça-feira, fevereiro 05, 2019

5º lugar no III CONCURSO DE MICROCONTO DE ARAÇATUBA – SP, 2019
Desflorestamento:
Sem árvores, morriam aos montes de falta de ar. Sem madeira para a construção de caixões, os vivos enterravam seus mortos embrulhando-os em lençóis.

segunda-feira, janeiro 28, 2019

Um continho para Brumadinho 

Maria Elisa ficou se coçando na cama, não querendo levantar, já que estava de folga. Às sextas seu Nonô, dono da loja de queijos e doces mineiros onde ela trabalhava, dava-lhe folga, pois sábado era um dia muito bom para vendas, cheio de turistas, e ela era a melhor vendedora da loja e sempre acabava convencendo os clientes a levar mais do que pensavam e queriam.
Por fim, saiu da cama, acordou as crianças e, depois do café, já foi colocar ordem na casa, lavar o quintal cheio de cocô de cachorro e pôr a roupa na lavadora.
Quando as roupas estavam balançando no varal e lançando o cheiro de amaciante no nariz de quem passava na calçada, Maria Elisa e as crianças almoçaram e ela os levou para a escola. No Mercadinho do Povo comprou algumas coisas e foi para a casa dos pais dela, ali perto. A mãe havia feito panqueca de palmito e ela amava. Ficaram conversando um pouco, ela contou à mãe um sonho que vinha tendo, ao que a mãe disse que era apenas um sonho e que não se preocupasse. Antes de ir embora, deu um beijo na careca do pai, que dormia depois do almoço, um abraço bem forte na mãe, o que não costumava fazer, pois elas se viam todos os dias, e saiu. Ia para casa e lá ficaria até a hora de buscar as crianças na escola.
No caminho, uma visão marrom a fez paralisar na calçada, em choque. Fazia duas semanas que ela sonhava com um mar de lama vindo em sua direção e a visão era tal e qual a de seu sonho. O estado de catatonia dela não a deixava agir, nem correr, nem gritar. Tampouco via o corre-corre nem ouvia o barulho ensurdecedor do desespero. Era como se ela tivesse sido pregada no chão, imóvel, uma pedra.
Pi-pi-pi, pi-pi-pi, pi-pi-pi, Maria Elisa abaixa o pino do despertador. Era sexta-feira e ela estava de folga, mas tinha muitas coisas pra fazer, lavar roupas, colocar ordem na casa, por isso era preciso levantar. Novamente ela teve aquele sonho com um mar de lama. “Por que será que ela vinha tendo esse sonho ruim havia duas semanas?”, pensou, antes de colocar os pés para fora da cama.
Em Brumadinho, um lugar muito bonitim, no varal a roupa branquinha brincava com o vento, pra lá e pra cá. Até que a lama, mesmo sem querer, acabou com toda e qualquer brincadeira.
Na sala lotada de gente de família, as duas velhas - uma humana e uma cadeira de balanço - eram as únicas que se comunicavam entre si.

5. LUGAR NO II Concurso de Microconto de Araçatuba, SP, 2018
#microcontofatimaflorentino
tema: violência contra o idoso

Descompasso  Os ponteiros do relógio não conseguem mais acompanhar a passagem das horas. Nanci Ricci