terça-feira, abril 21, 2020

O coveiro (Nanci Ricci)
Coveiro era sua profissão. E dela tinha muito orgulho. Quando perguntavam em que trabalhava, respondia, satisfeito: “Sou responsável por dar a última morada para as pessoas”. E todo esse orgulho e satisfação tornavam constrangedor o momento de enterrar alguém, já que, em meio a lágrimas e lamentos infinitos dos entes queridos do morto, ele demonstrava prazer e mesmo certa alegria enquanto realizava seu ofício, conservando os lábios em leve sorriso. Às vezes até cantarolava e assobiava, parando assim que o bom-senso chegava até ele. Mas tinha imenso respeito pelos mortos, isso era inegável.
Foi a primeira e única profissão. Saíra de casa com 15 anos, passando a perambular por várias cidades. Com 18 anos encontrou uma cidade que, por algum motivo, o fez ter vontade de nela permanecer. No único cemitério da localidade, foi empregado como coveiro e conseguiu um quarto para morar ali mesmo, ao lado da administração.
Quando estava com 25 anos, começou a cultivar a ideia e o desejo de que sua última morada fosse nesse cemitério. Como não tinha tantos gastos, juntava boa parte do salário para realizar esse desejo.
Dez anos depois, foi possível comprar um lote do cemitério, onde passou a construir sua sepultura e a dela cuidar, nas horas vagas, como quem cuida da própria casa.
Tempos depois, quis uma estátua com a própria imagem para ser colocada no seu túmulo, igual às que via nas sepulturas da parte do cemitério cujos donos eram mortos ricos, ainda que o lote por ele adquirido ficasse na parte dos mortos pobres.
Juntou, assim, dinheiro suficiente para encomendar a um escultor uma estátua que representasse a imagem dele e suas ferramentas de trabalho – pá, vassoura, regador. Para a base da estátua encomendou os dizeres “Davi Aleixo, cuidador neste cemitério. *30/3/1939 – †16/5/1979”.
Os poucos colegas de Davi não entenderam por que ele mandou gravar na estátua o dia, o mês e o ano de sua morte. Ele desconversava quando falavam sobre isso.
No final do dia 16 de maio de 1979, após mais um dia de trabalho, Davi despediu-se de todos de maneira diferente do que costumava. Abraçou cada um e disse “Sorte!”. Ninguém se lembrava de que esse era o dia gravado em sua estátua e não notaram a diferença na despedida.
Depois, Davi caminhou devagar entre as alamedas do cemitério respirando toda aquela paz e quietude. Quando chegou ao túmulo de um cantor que tinha morrido havia mais de 80 anos resolveu parar. Era incrível, refletiu, que, mesmo tendo passado todo esse tempo, o cantor ainda tinha fãs que não só depositavam flores em seu túmulo como também ajeitavam entre os dedos de sua estátua um cigarro aceso. Sentou-se no túmulo, ao lado da estátua do artista e, com o olhar perdido no infinito, acendeu dois cigarros, um para a estátua e outro para si mesmo. Enquanto soltava a fumaça do cigarro, observava longamente o cemitério, os túmulos dos quais cuidava tão bem e os ciprestes balançando, suaves, ao vento. Os ciprestes prenderam sua atenção por um instante; lembrou-se de alguns religiosos que vieram, uma vez, falar-lhe sobre essa árvore, mencionando uma passagem da Bíblia em que Deus Se compara aos ciprestes e aos filhos Dele, por serem fortes e permanecerem intactos, a qualquer que seja o desafio a enfrentar. Por fim, disseram que devíamos todos ser gratos à vida. Davi, se tinha gratidão, era mais à morte do que à vida.
O pensamento do coveiro, então, vagou para as diferenças que havia entre a parte rica e a parte pobre do cemitério. Em uma parte, havia túmulos enormes e imponentes, com estátuas de anjos e de arcanjos em oração, de santos e santas a olharem para o céu a pedir piedade, tudo feito com luxo e beleza, beleza que podia ser notada até mesmo na tristeza estampada no rosto de muitas das estátuas. Na outra parte, a não ser pelo túmulo dele, que se destacava pelo tamanho e pela estátua, havia pequenas placas no chão, com a identificação do morto, e um ou outro vaso com crisântemos; outras sepulturas nem placa traziam. Em todos esses anos de ofício, ele nunca fez diferenciação nos cuidados que tinha com uma e com outra parte do cemitério, e não sabia, antes de conhecer esse, que existia cemitério separado em lado rico e lado pobre. Sempre tratava cada túmulo de maneira igual. Nos que tinham apenas uma placa, fazia que ela sempre estivesse muito limpa e brilhando, e, caso não houvesse nenhum vaso com flor, colocava flores que estivessem sobrando em algum túmulo de luxo. Todas as pessoas eram iguais na morte, deduziu, fosse rico ou fosse pobre. Se em vida não havia igualdade, na morte havia, não importava o tamanho ou o luxo do túmulo.
Lembrou-se de algumas histórias famosas de mortos ricos daquele cemitério. Tinha a história do casal que se odiava em vida. O marido morreu antes da esposa e um busto dele foi colocado voltado para o leste do cemitério. Quando a esposa morreu, ela havia orientado que o busto dela fosse colocado olhando para o oeste, de costas para o busto do marido. Era um ódio eterno. Davi não entendia a existência de tanto ódio assim. Então, ele recordou de uma história bonita, embora triste, de uma moça que morreu em uma viagem e, no mesmo dia, o cachorrinho dela, que havia ficado em casa, também morreu. A moça e o cachorrinho foram enterrados na mesma sepultura e foi feita uma estátua dela com seu bicho preferido no colo.
Davi olhou o relógio e viu que já eram 11 horas da noite. E era o dia 16 de maio de 1979. Tinha de se apressar. Foi para o quarto. Faltando exatamente 1 minuto para o dia seguinte, morreu por suas próprias mãos. Estava feliz por finalmente poder estrear sua sepultura e não titubeou nem um instante ao realizar o derradeiro gesto. A única tristeza que levava na alma era não poder ser enterrado por suas próprias mãos.

Descompasso  Os ponteiros do relógio não conseguem mais acompanhar a passagem das horas. Nanci Ricci