segunda-feira, janeiro 28, 2019

Um continho para Brumadinho 

Maria Elisa ficou se coçando na cama, não querendo levantar, já que estava de folga. Às sextas seu Nonô, dono da loja de queijos e doces mineiros onde ela trabalhava, dava-lhe folga, pois sábado era um dia muito bom para vendas, cheio de turistas, e ela era a melhor vendedora da loja e sempre acabava convencendo os clientes a levar mais do que pensavam e queriam.
Por fim, saiu da cama, acordou as crianças e, depois do café, já foi colocar ordem na casa, lavar o quintal cheio de cocô de cachorro e pôr a roupa na lavadora.
Quando as roupas estavam balançando no varal e lançando o cheiro de amaciante no nariz de quem passava na calçada, Maria Elisa e as crianças almoçaram e ela os levou para a escola. No Mercadinho do Povo comprou algumas coisas e foi para a casa dos pais dela, ali perto. A mãe havia feito panqueca de palmito e ela amava. Ficaram conversando um pouco, ela contou à mãe um sonho que vinha tendo, ao que a mãe disse que era apenas um sonho e que não se preocupasse. Antes de ir embora, deu um beijo na careca do pai, que dormia depois do almoço, um abraço bem forte na mãe, o que não costumava fazer, pois elas se viam todos os dias, e saiu. Ia para casa e lá ficaria até a hora de buscar as crianças na escola.
No caminho, uma visão marrom a fez paralisar na calçada, em choque. Fazia duas semanas que ela sonhava com um mar de lama vindo em sua direção e a visão era tal e qual a de seu sonho. O estado de catatonia dela não a deixava agir, nem correr, nem gritar. Tampouco via o corre-corre nem ouvia o barulho ensurdecedor do desespero. Era como se ela tivesse sido pregada no chão, imóvel, uma pedra.
Pi-pi-pi, pi-pi-pi, pi-pi-pi, Maria Elisa abaixa o pino do despertador. Era sexta-feira e ela estava de folga, mas tinha muitas coisas pra fazer, lavar roupas, colocar ordem na casa, por isso era preciso levantar. Novamente ela teve aquele sonho com um mar de lama. “Por que será que ela vinha tendo esse sonho ruim havia duas semanas?”, pensou, antes de colocar os pés para fora da cama.
Em Brumadinho, um lugar muito bonitim, no varal a roupa branquinha brincava com o vento, pra lá e pra cá. Até que a lama, mesmo sem querer, acabou com toda e qualquer brincadeira.
Na sala lotada de gente de família, as duas velhas - uma humana e uma cadeira de balanço - eram as únicas que se comunicavam entre si.

5. LUGAR NO II Concurso de Microconto de Araçatuba, SP, 2018
#microcontofatimaflorentino
tema: violência contra o idoso

Descompasso  Os ponteiros do relógio não conseguem mais acompanhar a passagem das horas. Nanci Ricci