segunda-feira, maio 04, 2020

Minha singela homenagem em conto para Aldir Blanc.

Repostagem

Incompatibilidade de gênios

Conto baseado na música de mesmo nome de autoria de João Bosco e Aldir Blanc. Versão da mulher da história.

Para a vidente:
Eu sei que trouxe as cuecas dele para a senhora rezar. Queria segurar esse homem a qualquer custo, queria ele só pra mim. Até coei café nas calças dele, como a senhora me disse pra fazer. Mas agora tem como a senhora desrezar as cuecas e tem como eu descoar o café? Não quero mais esse homem não. Cruz-credo. Explico.
Em casa, ele só fica pregado na poltrona vendo ou ouvindo futebol. E não é só jogo do Flamengo não. E não é só jogo ao vivo também não. É qualquer um, ao vivo, reprise, o tempo todo. E eu odeio futebol. Muito. Demais até. Outro dia cheguei em casa, pedi pra tirar do jogo e pôr uma música. Ele nem prestou atenção no que eu disse. Fez ouvidos moucos, como sempre. Fui lá, mudei a estação do rádio e comecei a cantar bem alto.
E quando essa criatura fica doente? Pode ser um simples resfriado. Ah, que mole que o traste é. Geme o tempo todo. Quem aguenta ficar perto de gente que geme? Não suporto. Pra ele, até um cisco no olho é um problema, acha que o olho vai cair, faz escândalo, geme. Ai, ai.
Agora deu pra ir ao bar. Fala que é só um pulo, um pulinho, um instantinho e que logo volta. Volta nada. Demora horas. E já chegou a demorar um dia inteiro. De castigo, faço dormir no sofá dez noites seguidas. Nem adianta vir com “benzinho” pra cá, “benzinho” pra lá. Benzinho o cacete.
E a novidade agora é cobrador batendo em casa. Ele corre pra se esconder e pede pra eu dizer que não está. Sabe o que eu faço? Mando o cobrador entrar, sentar e ainda ofereço café.
Ele mudou de emprego faz um mês. E sabe que sou muito grudada na minha mãe. Como eu tô trabalhando e ele mudou para um emprego melhor, é natural que minha mãe venha morar com a gente, não é mesmo? Mas não. Não quer de jeito nenhum. O que que tem minha mãe morar junto com a gente, oras bolas? Afinal de contas, ela é tão quietinha e não amola ninguém. E ia até ajudar a cuidar da casa, pois ele não ajuda. Não ajuda em nada.
Outro dia, na hora da janta, acabei salgando o feijão. Foi sem querer, sabe. Ele adora feijão e disse que salguei de propósito. Não foi de propósito, eu juro.
Ele tá ficando meio velho, acho, e tudo o irrita. Diz que só faço coisa pra atazanar a vida dele. Se faz frio e coloco o casaco, ele fala que tá um calor insuportável e pergunta por que que eu tô colocando o casaco. Será que a pessoa não pode nem se agasalhar quando tá frio?
Na semana passada sonhei com ele e mandei-o jogar no bicho. Deu burro na cabeça.

Descompasso  Os ponteiros do relógio não conseguem mais acompanhar a passagem das horas. Nanci Ricci