Os
tapetes
Nanci Ricci – São Paulo/SP
Quem me acordou, como sempre,
foi Zeus, meu gato. E por mais alegria que ele me dê ao nascer do sol, naquele
dia saí da cama pesarosa, pressentindo que o dia seria esquisito. Nem escolhi a
roupa direito para ir trabalhar. E olhe que sempre gosto de combinar tudo,
roupa, sapatos, jamais saio sem brincos nem batom. Até consegui passar um batom
meio sem cor, mas brincos, pela primeira vez, fiquei sem e fui com as orelhas
nuazinhas. Depois de subir de ônibus lotado, descer de ônibus lotado, pegar
trem, lotação, cheguei, enfim ao meu trabalho. E ter um trabalho, em certas
épocas, ou melhor, em todas as épocas, é um luxo. Cumprimentei a todos os que
encontrava pelo caminho com um leve abaixar de cabeça. De minha boca não tinha
jeito de sair nem um “bom-diazinho” sequer.
No banheiro, lavei o rosto e
não acreditei na minha cara lambida. Procurei na bolsa um batom mais vivo, um
rosa ou vermelho-claro, e não achei. Não me conformava com minhas orelhas
peladas e fucei na bolsa para ver se não tinha um par perdido em um dos dez
compartimentos dela. O jeito foi começar a trabalhar com cara lambida e orelhas
peladas. Liguei o computador e esperei o lerdo iniciar. Trabalhei um pouco, vi
quando o café chegou nas garrafas térmicas e corri para pegar um. Algo
precisava tirar de mim aquela sensação esquisita e tinha esperança de que o
café o fizesse.
Voltei para o meu lugar e vi
que meu chefe já havia chegado. Para ele eu disse um bom-dia falado e, antes
que eu me sentasse, ele me chamou. Quis saber algumas coisas do trabalho que eu
estava fazendo e me disse que às 10 horas era para eu subir para a sala de
reunião do 5º andar. Voltei para minha mesa mais pesada do que quando acordei. Sala
de reunião? Para quê?
O tempo de espera até o
horário para eu subir pareceu infinito. E minha ansiedade galopante não deixava
que eu fizesse mais nada de útil. Passei a visualizar mil tragédias e cenários
futuros terríveis e doloridos.
Eu tinha 44 anos, dependia
daquele salário para tudo: o aluguel do apartamento mínimo no centro da cidade,
minha alimentação e do meu gato, contas de água, luz, gás, telefone, Netflix,
etc. A família havia se diluído no caminho. Uns mortos, outros eu não via fazia
décadas, e eu havia sobrado e ainda estava por aqui.
Dez horas. Subi. De escada,
para a cada degrau subido eu poder pensar sobre mais situações avassaladoras e
terríveis. Entrei na sala branca e gelada e sentei na cadeira cinza de metal
frio. Comecei a chacoalhar uma das pernas, com a ansiedade concentrada nelas.
Fiquei uns dez minutos esperando até que chegou a moça do RH, baixinha, com um
salto enorme, roupa parecendo que foi passada no corpo e cabelos lisíssimos e
brilhantes. Disse-me um bom-dia com um sorriso amarelo, ainda que os dentes
dela reluzissem de tão brancos, e sentou do outro lado da mesa, colocando uma
pasta em cima. Toda a introdução, as justificativas, os esclarecimentos sobre
os problemas pelos quais a empresa estava passando, todo o blá-blá se resumiu
em uma frase curta e devastadora: “Você está despedida!”.
Juro que me deu vontade de
pedir “PeloamordeDeus” que não me despedissem, pois onde eu ia encontrar
trabalho com dezenas de milhões de desempregados e tal? Que bom que um orgulho
que sempre temos me impediu de fazer isso e também me impediu de chorar ali, na
frente da moça.
Desci as escadas, peguei minha
bolsa e saí, sem olhar para ninguém, sem dizer nada. Alguém me chamou mas a
rapidez com que saí não deixou a pessoa me alcançar. Lá fora chorei. Fui
chorando no ônibus, no metrô e desci uns 3 km longe de casa para poder passar
no mercado. Não chorava mais.
Comprei comida para mim e para
Zeus e produtos de limpeza em excesso. As sacolas ficaram absurdamente pesadas.
Dividi entre os dois braços e me arrependi de ter comprado tanto. Sempre tive
muito medo de passar fome, e essa é a justificativa para a compra enorme de
comida. Ainda tinha dinheiro e ia receber o valor da rescisão, por isso acho
que quis fazer estoque. Nunca passei fome na vida, mas quase. Éramos bem pobres
e vivíamos com grande dificuldade, mas nunca faltou comida. Ela chegava com
muito sacrifício, mas chegava. Às vezes era arroz com ovo, arroz com banana,
arroz apenas, feijão com farinha, mas comíamos todos os dias. O quase talvez
tenha me traumatizado, e por isso eu tinha esse medo da fome.
Cheguei em casa quase morta de
carregar aquele peso. Podia ter pego um táxi, mas a economia que precisava
fazer daquele momento em diante havia me invadido e por isso fui a pé, me
autoflagelando com a caminhada carregando um fardo maior do que eu podia
carregar.
Naquela noite não dormi nada,
claro. Se não dormia direito nem quando tudo estava dentro da normalidade,
imagine quando algo saiu do eixo. Não era mais para ir trabalhar, fui
dispensada do aviso-prévio. Eu tinha de esperar que me ligassem para a
homologação e exame médico.
Passei o dia de camisola e
limpando a casa. Limpei cantos que nem sabia da existência, cada milímetro foi
esfregado com força, mesmo com o braço doendo da dor de sempre e do acréscimo
de dor pelas sacolas pesadas. Limpei dentro de armários, tirei roupas que não
usava mais, sapatos, bolsas, fiz umas dez sacolas para doação. Ou seria melhor
vender? Como tudo aquilo cabia naquele lugar minúsculo onde eu morava?
Na hora de fazer comida, fiz
só um pingo. Era a economia de novo. Nunca fui de desperdício e jamais jogava
comida fora, mas agora precisava fazer menos ainda. Ia aprender a comer menos.
O pior é que sempre fui de ter fome o tempo todo, além da ansiedade que me
fazia comer mais. O medo da fome ia fazer eu não ter tanta fome.
Depois de um dia de faxina
exaustiva, deitei e fiquei olhando para o teto. Enxerguei umas manchas escuras
de bolor e lá fui eu pegar a escada e, vencendo o cansaço, esfreguei e tirei
todas as manchas que encontrei pelo caminho. Por fim, tomei banho e desmaiei.
O Zeus em cima de mim me
acordando e o despertador tocando me fizeram abrir os olhos e, lembrando-me da
realidade em que me encontrava, senti um aperto no peito como se fosse morrer.
Não tinha para onde ir, quero dizer, não tinha o trabalho para ir. O que eu ia
fazer? E como ia ganhar dinheiro?
A casa estava limpa, já havia
feito a cata nos armários, não queria ler nem ver TV. Também não queria sair.
Vai que me desse uma vontade súbita de comprar algo de que não precisava. Nada
de gastar. Foi quando resolvi matutar e pensar nas coisas que eu sabia fazer. Aprendi
confeccionar uns tapetes peludos com uma tia, havia muitos anos. Eram tapetes
bacanas, costurados na máquina. Deixei essa ideia ir amadurecendo e certa
esperança alegre me invadiu e eu sorri, o que não fazia há tempos.
Comprei uma máquina de costura
com o dinheiro da rescisão e comecei a costurar tapete e mais tapete. Mal
parava para comer e ir ao banheiro. Sou compulsiva com certas coisas que começo
a fazer e faço sem parar até enjoar. Por exemplo, uma vez comecei a fazer
sapatos de lã e não parava nunca mais. Doei setenta pares para uma casa de
repouso.
Como venderia os tapetes?
Sempre fui péssima vendedora. E vender em feira de artesanato não daria certo.
Sempre que ia a uma dessas feiras, ficava com pena dos artesãos-vendedores,
sempre com olhos de esperança que seus produtos fossem comprados e, com as
pessoas apenas passando e não comprando nada, viravam olhos tristes. Era capaz
de eu ficar com olhos tristes o tempo todo e espantar possíveis fregueses.
Costurei dezenas de tapetes e
parei só quando não havia mais espaço para colocar um sequer. Com essa pausa,
pensei que poderia vender pela internet, fazendo uma boa estratégia de
marketing.
Daquele dia em que acordei
terrivelmente pesarosa até hoje se passaram dez anos. A frase que ouvi na época
“Você está despedida!” e que, no momento, pareceu-me a mais terrível e
portadora de um futuro terrível e sombrio, foi a melhor fala que alguém podia
dirigir a mim em todos os tempos. Hoje sou empresária de tapetes peludos e eles
são vendidos em vários países da América Latina. Não costuro mais e tenho
vários funcionários para cuidar da confecção e de outras áreas da empresa. A
empresa vai muito bem e nunca mais ouvirei “Você está despedida!”. Aliás, essa
frase nunca foi dita por mim a nenhum funcionário. Nunca foi necessário e até
hoje só saiu quem quis.
Conto publicado na 15a. edição da @Revista LiteraLivre.