quinta-feira, junho 13, 2019

Os tapetes

Nanci Ricci – São Paulo/SP

Quem me acordou, como sempre, foi Zeus, meu gato. E por mais alegria que ele me dê ao nascer do sol, naquele dia saí da cama pesarosa, pressentindo que o dia seria esquisito. Nem escolhi a roupa direito para ir trabalhar. E olhe que sempre gosto de combinar tudo, roupa, sapatos, jamais saio sem brincos nem batom. Até consegui passar um batom meio sem cor, mas brincos, pela primeira vez, fiquei sem e fui com as orelhas nuazinhas. Depois de subir de ônibus lotado, descer de ônibus lotado, pegar trem, lotação, cheguei, enfim ao meu trabalho. E ter um trabalho, em certas épocas, ou melhor, em todas as épocas, é um luxo. Cumprimentei a todos os que encontrava pelo caminho com um leve abaixar de cabeça. De minha boca não tinha jeito de sair nem um “bom-diazinho” sequer.
No banheiro, lavei o rosto e não acreditei na minha cara lambida. Procurei na bolsa um batom mais vivo, um rosa ou vermelho-claro, e não achei. Não me conformava com minhas orelhas peladas e fucei na bolsa para ver se não tinha um par perdido em um dos dez compartimentos dela. O jeito foi começar a trabalhar com cara lambida e orelhas peladas. Liguei o computador e esperei o lerdo iniciar. Trabalhei um pouco, vi quando o café chegou nas garrafas térmicas e corri para pegar um. Algo precisava tirar de mim aquela sensação esquisita e tinha esperança de que o café o fizesse.
Voltei para o meu lugar e vi que meu chefe já havia chegado. Para ele eu disse um bom-dia falado e, antes que eu me sentasse, ele me chamou. Quis saber algumas coisas do trabalho que eu estava fazendo e me disse que às 10 horas era para eu subir para a sala de reunião do 5º andar. Voltei para minha mesa mais pesada do que quando acordei. Sala de reunião? Para quê?
O tempo de espera até o horário para eu subir pareceu infinito. E minha ansiedade galopante não deixava que eu fizesse mais nada de útil. Passei a visualizar mil tragédias e cenários futuros terríveis e doloridos.
Eu tinha 44 anos, dependia daquele salário para tudo: o aluguel do apartamento mínimo no centro da cidade, minha alimentação e do meu gato, contas de água, luz, gás, telefone, Netflix, etc. A família havia se diluído no caminho. Uns mortos, outros eu não via fazia décadas, e eu havia sobrado e ainda estava por aqui.
Dez horas. Subi. De escada, para a cada degrau subido eu poder pensar sobre mais situações avassaladoras e terríveis. Entrei na sala branca e gelada e sentei na cadeira cinza de metal frio. Comecei a chacoalhar uma das pernas, com a ansiedade concentrada nelas. Fiquei uns dez minutos esperando até que chegou a moça do RH, baixinha, com um salto enorme, roupa parecendo que foi passada no corpo e cabelos lisíssimos e brilhantes. Disse-me um bom-dia com um sorriso amarelo, ainda que os dentes dela reluzissem de tão brancos, e sentou do outro lado da mesa, colocando uma pasta em cima. Toda a introdução, as justificativas, os esclarecimentos sobre os problemas pelos quais a empresa estava passando, todo o blá-blá se resumiu em uma frase curta e devastadora: “Você está despedida!”.
Juro que me deu vontade de pedir “PeloamordeDeus” que não me despedissem, pois onde eu ia encontrar trabalho com dezenas de milhões de desempregados e tal? Que bom que um orgulho que sempre temos me impediu de fazer isso e também me impediu de chorar ali, na frente da moça.
Desci as escadas, peguei minha bolsa e saí, sem olhar para ninguém, sem dizer nada. Alguém me chamou mas a rapidez com que saí não deixou a pessoa me alcançar. Lá fora chorei. Fui chorando no ônibus, no metrô e desci uns 3 km longe de casa para poder passar no mercado. Não chorava mais.
Comprei comida para mim e para Zeus e produtos de limpeza em excesso. As sacolas ficaram absurdamente pesadas. Dividi entre os dois braços e me arrependi de ter comprado tanto. Sempre tive muito medo de passar fome, e essa é a justificativa para a compra enorme de comida. Ainda tinha dinheiro e ia receber o valor da rescisão, por isso acho que quis fazer estoque. Nunca passei fome na vida, mas quase. Éramos bem pobres e vivíamos com grande dificuldade, mas nunca faltou comida. Ela chegava com muito sacrifício, mas chegava. Às vezes era arroz com ovo, arroz com banana, arroz apenas, feijão com farinha, mas comíamos todos os dias. O quase talvez tenha me traumatizado, e por isso eu tinha esse medo da fome.
Cheguei em casa quase morta de carregar aquele peso. Podia ter pego um táxi, mas a economia que precisava fazer daquele momento em diante havia me invadido e por isso fui a pé, me autoflagelando com a caminhada carregando um fardo maior do que eu podia carregar.
Naquela noite não dormi nada, claro. Se não dormia direito nem quando tudo estava dentro da normalidade, imagine quando algo saiu do eixo. Não era mais para ir trabalhar, fui dispensada do aviso-prévio. Eu tinha de esperar que me ligassem para a homologação e exame médico.
Passei o dia de camisola e limpando a casa. Limpei cantos que nem sabia da existência, cada milímetro foi esfregado com força, mesmo com o braço doendo da dor de sempre e do acréscimo de dor pelas sacolas pesadas. Limpei dentro de armários, tirei roupas que não usava mais, sapatos, bolsas, fiz umas dez sacolas para doação. Ou seria melhor vender? Como tudo aquilo cabia naquele lugar minúsculo onde eu morava?
Na hora de fazer comida, fiz só um pingo. Era a economia de novo. Nunca fui de desperdício e jamais jogava comida fora, mas agora precisava fazer menos ainda. Ia aprender a comer menos. O pior é que sempre fui de ter fome o tempo todo, além da ansiedade que me fazia comer mais. O medo da fome ia fazer eu não ter tanta fome.
Depois de um dia de faxina exaustiva, deitei e fiquei olhando para o teto. Enxerguei umas manchas escuras de bolor e lá fui eu pegar a escada e, vencendo o cansaço, esfreguei e tirei todas as manchas que encontrei pelo caminho. Por fim, tomei banho e desmaiei.
O Zeus em cima de mim me acordando e o despertador tocando me fizeram abrir os olhos e, lembrando-me da realidade em que me encontrava, senti um aperto no peito como se fosse morrer. Não tinha para onde ir, quero dizer, não tinha o trabalho para ir. O que eu ia fazer? E como ia ganhar dinheiro?
A casa estava limpa, já havia feito a cata nos armários, não queria ler nem ver TV. Também não queria sair. Vai que me desse uma vontade súbita de comprar algo de que não precisava. Nada de gastar. Foi quando resolvi matutar e pensar nas coisas que eu sabia fazer. Aprendi confeccionar uns tapetes peludos com uma tia, havia muitos anos. Eram tapetes bacanas, costurados na máquina. Deixei essa ideia ir amadurecendo e certa esperança alegre me invadiu e eu sorri, o que não fazia há tempos.
Comprei uma máquina de costura com o dinheiro da rescisão e comecei a costurar tapete e mais tapete. Mal parava para comer e ir ao banheiro. Sou compulsiva com certas coisas que começo a fazer e faço sem parar até enjoar. Por exemplo, uma vez comecei a fazer sapatos de lã e não parava nunca mais. Doei setenta pares para uma casa de repouso.
Como venderia os tapetes? Sempre fui péssima vendedora. E vender em feira de artesanato não daria certo. Sempre que ia a uma dessas feiras, ficava com pena dos artesãos-vendedores, sempre com olhos de esperança que seus produtos fossem comprados e, com as pessoas apenas passando e não comprando nada, viravam olhos tristes. Era capaz de eu ficar com olhos tristes o tempo todo e espantar possíveis fregueses.
Costurei dezenas de tapetes e parei só quando não havia mais espaço para colocar um sequer. Com essa pausa, pensei que poderia vender pela internet, fazendo uma boa estratégia de marketing.
Daquele dia em que acordei terrivelmente pesarosa até hoje se passaram dez anos. A frase que ouvi na época “Você está despedida!” e que, no momento, pareceu-me a mais terrível e portadora de um futuro terrível e sombrio, foi a melhor fala que alguém podia dirigir a mim em todos os tempos. Hoje sou empresária de tapetes peludos e eles são vendidos em vários países da América Latina. Não costuro mais e tenho vários funcionários para cuidar da confecção e de outras áreas da empresa. A empresa vai muito bem e nunca mais ouvirei “Você está despedida!”. Aliás, essa frase nunca foi dita por mim a nenhum funcionário. Nunca foi necessário e até hoje só saiu quem quis.


Conto publicado na 15a. edição da @Revista LiteraLivre.

quarta-feira, junho 12, 2019

O par perfeito

Passou uma vida inteira no canto esperando a volta de seu par. Não aceitava um par que não fosse o seu perfeito. Morreu amarelada pelo tempo e pela espera, mesmo com tantos pés de meia querendo fazer-lhe par.

Descompasso  Os ponteiros do relógio não conseguem mais acompanhar a passagem das horas. Nanci Ricci