terça-feira, abril 25, 2017

Novos microcontos

2 abr. 2017 (Palavra do dia: beijo)
Dava um beijo na santa e corda no relógio, antes de ir trabalhar, religiosamente. No dia que tentou dar corda na santa, depois do beijo no relógio, perdeu completamente a fé, nos santos, nos homens e no tempo.


3 abr. 2017 (Palavra do dia: veleiro)
Para ser chamado pelo verdadeiro nome, pegou um lençol e passou a se mover com os braços levantados e o lençol voando sobre sua cabeça. Que parassem de chamá-lo de Canoa. Ele era um veleiro, sim, senhor. “Ô, Barco a vela, tá na hora do remédio”, disse o enfermeiro, assim que o viu deslizando no mar.



5 abr. 2017 (Palavra do dia: remédio)
Não saía de casa sem remédio para diarreia, dor de cabeça ou um provável AVC. Desde jovem. Foi piorando com o passar dos anos. Tinha certeza de que qualquer dia ia se desmanchar em plena avenida. Qualquer dorzinha já o fazia começar a se despedir da vida. Morreu de velhice, sem nunca ficar doente.


Enquanto ele não lhe invadia o corpo, tomando conta de seus pensamentos, de seus sentimentos mais profundos, nocauteando-lhe os neurônios, ela não conseguia dormir. Suava, rolava na cama, era toda agitação, agonia e êxtase. Somente ele, o Rivotril, era o remédio capaz de combater tamanha insônia. 


7 abr. 2017 (Palavra do dia: ovo)
Saiu do sítio arqueológico levando para casa os dois estranhos ovos que lá estavam. Cuidou deles como uma mãe galinha cuida dos seus. Aqueceu-os, fez neles carinho, conversou e leu para eles. Em 2019, a casca dos dois começou a lascar-se. Conteúdo: um casal de carnossauro. Fim da raça humana.


10 abr. 2017 (Palavra do dia: sangue)
“Não tenho sangue de barata não!”, vivia dizendo a todos o tempo todo. Numa manhã fria, depois de um sono imensamente confuso e transtornante, percebeu que o corpo estirado na cama não era mais seu. Os pensamentos e os sentimentos eram dele, mas o corpo, agora, era de um imenso inseto.


13 abr. 2017 (Palavra do dia: flauta)
Não se achava com aptidão para nada nem coisa nenhuma. Em busca de sentido, pegou a flauta que não sabia tocar e saiu caminhando pela estrada “tu-tu-tu”. Depois de andar dezenas de quilômetros, resolveu olhar para atrás. Havia uma multidão seguindo-o doce e silenciosamente, como a seguir um deus.


14 abr. 2017
Pôs-se a escrever numa Sexta-Feira Santa: “Num meio dia de fim de primavera, tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer à Terra. Veio pela encosta de um monte. Tornado outra vez menino, a correr e a rolar-se pela erva... E a rir de modo a ouvir-se de longe... Tinha fugido do céu. Era nosso demais para fingir de segunda pessoa da Trindade, onde tinha de ficar sempre sério. E subir para a cruz e estar sempre a morrer. Hoje vive na minha aldeia comigo. É uma criança bonita de riso e natural... A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as cousas... Quando eu morrer, filhinho, seja eu a criança, o mais pequeno. Pega-me tu no colo e conta-me histórias, caso eu acorde, para eu tornar a adormecer. E dá-me os sonhos teus para eu brincar”. E assinou: Alberto Caeiro.


19 abr. 2017 (Palavra do dia: sogra)
Não queria ter sido mãe pois tinha medo do dia em que se tornaria sogra. Era boa demais para carregar todo o estigma que vem junto com esse título. No dia do casamento do filho, noivo e convidados dentro da igreja, noiva pronta para entrar. Cadê ela, a sogra? Fugiu na garupa da moto do vizinho.


20 abr. 2017 (Palavra do dia: ópera)
Tinha ódio a sons alheios e o vizinho de cima amava ópera. Quebrou 33 cabos de vassoura e arruinou o teto. Zilhões de xingamentos, de tampões de orelha e 3 anos depois, o vizinho partiu. Cabeça aliviada no travesseiro. Dias depois, ouve “tchu-tchu-tcha”. Vizinho novo no pedaço. Amante de funk.


22 abr. 2017 (Palavra do dia: almanaque)
Era cheio de manias. Uma delas era só conseguir fazer o n. 2 no banheiro lendo um Almanaque do Cascão. Quando a publicação estava esbagaçada de tanto uso, ficou entupido várias semanas até adquirir nova mania para poder fazer o n. 2: estudar o dicionário, só a letra F. Virou o Sábio da Efelogia.


24 abr. 2017 (Palavra do dia: língua)
Fabricava relógios de cuco desde muito jovem. Um dia, sentindo-se velho e cansado, construiu um relógio cujo pássaro não só saía da casinha para indicar a hora, mas também mostrava a língua, zombando de nós. O tempo sabe passar, mas nós não sabemos. 


25 abr. 2017 (Palavra do dia: terminal)
Vovozinho com mais lembranças do passado do que do presente. Queria voltar para a casa de sua mãe, que havia partido havia uns 50 anos. Colocou umas roupas em uma mala e foi para o terminal de trem. No quarto do bisneto, onde havia um Ferrorama montado no chão.

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Descompasso  Os ponteiros do relógio não conseguem mais acompanhar a passagem das horas. Nanci Ricci