Novos microcontos
2 abr. 2017 (Palavra do dia: beijo)
Dava um beijo na santa e corda no relógio, antes de ir
trabalhar, religiosamente. No dia que tentou dar corda na santa, depois do
beijo no relógio, perdeu completamente a fé, nos santos, nos homens e no tempo.
3 abr. 2017 (Palavra do dia: veleiro)
Para ser chamado pelo verdadeiro nome, pegou um lençol e
passou a se mover com os braços levantados e o lençol voando sobre sua cabeça.
Que parassem de chamá-lo de Canoa. Ele era um veleiro, sim, senhor. “Ô, Barco a
vela, tá na hora do remédio”, disse o enfermeiro, assim que o viu deslizando no
mar.
5 abr. 2017 (Palavra do dia: remédio)
Não saía de casa sem remédio para diarreia, dor de cabeça ou
um provável AVC. Desde jovem. Foi piorando com o passar dos anos. Tinha certeza
de que qualquer dia ia se desmanchar em plena avenida. Qualquer dorzinha já o
fazia começar a se despedir da vida. Morreu de velhice, sem nunca ficar doente.
Enquanto ele não lhe invadia o corpo, tomando conta de seus
pensamentos, de seus sentimentos mais profundos, nocauteando-lhe os neurônios,
ela não conseguia dormir. Suava, rolava na cama, era toda agitação, agonia e
êxtase. Somente ele, o Rivotril, era o remédio capaz de combater tamanha
insônia.
7 abr. 2017 (Palavra do dia: ovo)
Saiu
do sítio arqueológico levando para casa os dois estranhos ovos que lá estavam.
Cuidou deles como uma mãe galinha cuida dos seus. Aqueceu-os, fez neles
carinho, conversou e leu para eles. Em 2019, a casca dos dois começou a
lascar-se. Conteúdo: um casal de carnossauro. Fim da raça humana.
10 abr. 2017 (Palavra do dia: sangue)
“Não tenho sangue de barata não!”, vivia dizendo a todos o
tempo todo. Numa manhã fria, depois de um sono imensamente confuso e
transtornante, percebeu que o corpo estirado na cama não era mais seu. Os
pensamentos e os sentimentos eram dele, mas o corpo, agora, era de um imenso
inseto.
13 abr. 2017 (Palavra do dia: flauta)
Não se
achava com aptidão para nada nem coisa nenhuma. Em busca de sentido, pegou a
flauta que não sabia tocar e saiu caminhando pela estrada “tu-tu-tu”. Depois de
andar dezenas de quilômetros, resolveu olhar para atrás. Havia uma multidão
seguindo-o doce e silenciosamente, como a seguir um deus.
14 abr. 2017
Pôs-se a escrever numa Sexta-Feira Santa: “Num meio dia de
fim de primavera, tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer à
Terra. Veio pela encosta de um monte. Tornado outra vez menino, a correr e a
rolar-se pela erva... E a rir de modo a ouvir-se de longe... Tinha fugido do
céu. Era nosso demais para fingir de segunda pessoa da Trindade, onde tinha de
ficar sempre sério. E subir para a cruz e estar sempre a morrer. Hoje vive na
minha aldeia comigo. É uma criança bonita de riso e natural... A mim ensinou-me
tudo. Ensinou-me a olhar para as cousas... Quando eu morrer, filhinho, seja eu
a criança, o mais pequeno. Pega-me tu no colo e conta-me histórias, caso eu
acorde, para eu tornar a adormecer. E dá-me os sonhos teus para eu brincar”. E
assinou: Alberto Caeiro.
19 abr. 2017 (Palavra do dia: sogra)
Não queria ter sido mãe pois tinha medo do dia em que se
tornaria sogra. Era boa demais para carregar todo o estigma que vem junto com
esse título. No dia do casamento do filho, noivo e convidados dentro da igreja,
noiva pronta para entrar. Cadê ela, a sogra? Fugiu na garupa da moto do
vizinho.
20 abr. 2017 (Palavra do dia: ópera)
Tinha ódio a sons alheios e o vizinho de cima amava ópera.
Quebrou 33 cabos de vassoura e arruinou o teto. Zilhões de xingamentos, de
tampões de orelha e 3 anos depois, o vizinho partiu. Cabeça aliviada no
travesseiro. Dias depois, ouve “tchu-tchu-tcha”. Vizinho novo no pedaço. Amante
de funk.
22 abr. 2017 (Palavra do dia: almanaque)
Era cheio de manias. Uma delas era só conseguir fazer o n. 2
no banheiro lendo um Almanaque do Cascão. Quando a publicação estava esbagaçada
de tanto uso, ficou entupido várias semanas até adquirir nova mania para poder
fazer o n. 2: estudar o dicionário, só a letra F. Virou o Sábio da Efelogia.
24 abr. 2017 (Palavra do dia: língua)
Fabricava relógios de cuco desde muito jovem. Um dia,
sentindo-se velho e cansado, construiu um relógio cujo pássaro não só saía da
casinha para indicar a hora, mas também mostrava a língua, zombando de nós. O
tempo sabe passar, mas nós não sabemos.
25 abr. 2017 (Palavra do dia: terminal)
Vovozinho com mais lembranças do passado do que do presente.
Queria voltar para a casa de sua mãe, que havia partido havia uns 50 anos.
Colocou umas roupas em uma mala e foi para o terminal de trem. No quarto do
bisneto, onde havia um Ferrorama montado no chão.
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